quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Carta do Senhor Doutor

"O que eu tenho para lhe dizer é algo que me é, muito sinceramente, muito difícil de dizer. E é difícil porque é ao mesmo tempo emocionalmente doloroso e algo que me faz rir como um perdido sempre que o tento contar. Tenho más notícias e tenho notícias hilariantes sobre o seu tio Manel para lhe contar.

As más notícias são que o seu tio Manel morreu esta manhã aproximadamente às 10h45 depois de ter sido hospitalizado devido a um ligeiro desconforto intestinal. É com um grande pesar que sou o portador desta má noticia. Pelo informação que conseguimos reunir, os seus problemas de saúde não eram suficientes para lhe colocar a vida em risco. Ele morreu por causa de outra coisa...O que me traz às notícias hilariantes. As notícias hilariantes são que ele morreu depois de ter tropeçado numa esfregona que tinha sido mal arrumada, perdeu o controlo do seu andarilho, o que o fez cair no chão e rebolar até uma escadaria. Sei de fonte segura que várias testemunhas oculares choraram a rir com estes acontecimentos.

Como amigo de longa data da família, sei o quanto vocês os dois eram próximos. Ele era como um pai para si. Um pai alcoólico, que batia na sua mãe e abusava sexualmente de si, mas um pai. Os meus pêsames. Isto nunca deveria ter acontecido. Mas às vezes, a vida prega-nos partidas e foi o que aconteceu ao seu tio Manel.

Se isto lhe serve de consolação, as suas últimas palavras foram para si. Ele mostrou-se alarmado com o facto de você poder ficar preocupada depois de saber dos seus problemas de indigestão e queria que você soubesse, que tirando uma ou outra bufinha ocasional, algumas vezes com molho, estava tudo bem nesse departamento.

Quer dizer, aquelas foram as suas penúltimas palavras. Pelo que sabemos, as suas últimas palavras foram, “Dassssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssse”, depois de ter escorregado e o seu andarilho ter saído a voar pela janela. O seu tio, esse teve sorte porque o lanço de escadas no qual ele caiu, ia dar directamente a uma janela que por sinal estava aberta, o que o fez saltar pela janela e aterrar numa carrinha de caixa aberta que levava produtos do LIDL, que passava por ali naquela altura. Ainda é muito cedo para afirmar se foi esse primeiro impacto que o matou, ou se foi o facto de ter caído da carrinha um quarteirão mais à frente, e ter derrapado até um circo que ali estava instalado, levando-o a embater num carro cheio de anões. Acho que deveria saber que ele teve uma ovação de pé e gargalhadas gigantescas do público que estava no circo naquela altura, e as enfermeiras asseguraram-me que o anão que ele levou à frente se vai safar! Aliás, está neste momento a preparar o segundo álbum de originais com a Mafalda Veiga.

Quando uma coisa tão inesperada como esta acontece, nunca é fácil. Mas se isto pode servir de consolo para si e para a sua família, quando o seu tio morreu, dezenas e dezenas de pessoas, partiram-se a rir, e quase que aposto que hoje à noite a gravação em telemóvel já deve estar no YouTube. O seu tio era uma pessoa muito especial. Era um homem bom: devoto, trabalhador e bondoso. E como é evidente, enquanto se esbracejava e batia com a cabeça em tudo o que era sitio naquela que foi a sua viagem para o outro lado, ele foi também genuinamente um homem muito cómico.

Aqueles que tiveram o privilégio de assistir aos seus últimos momentos de vida, dizem que quando o seu capachinho saltou, isso elevou o grau de comicidade da situação consideravelmente, especialmente quando este aterrou em cima de uma mulher morbidamente obesa. Foi-me dito que um mirone chegou mesmo a esguichar café pelo nariz. Só mesmo uma situação engraçada faria isso acontecer.

Como é óbvio, tudo isto não retira tragédia ao acontecimento. Ele tinha apenas 57 anos. Se este cenário improvável não tivesse ocorrido, tenho todas as razões para pensar que ele iria ter muitos anos felizes e produtivos pela frente, embora, nenhum deles, pudesse fornecer tanto entretenimento puro como os seus últimos minutos de vida.

É sempre terrível quando uma vida é encurtada. Mas não é muito comum que tantas pessoas se consigam divertir em tamanha quantidade quando isso acontece. Devia estar orgulhosa desta morte sem sentido, quanto mais não seja, porque pode ser apreciada. Ninguém deveria ter que passar por algo tão doloroso e cómico sozinho.

Uma última coisa: foi-me dito que o seu tio lhe deixou uma fortuna considerável que ninguém na sua família sabia que ele tinha. Existe porém uma condição para ter direito aquele dinheiro: na herança vem escrito que só poderá ficar com o dinheiro depois de ter passado pelo menos um ano na selva, com um orangotango que solte bufinhas como se não houvesse amanhã. Mas agora também não é altura para entrar em detalhes. Iremos ter muito tempo para discutir os pormenores do “caso orangotango” depois de recuperar da tristeza da sua perda.

Mais uma vez, lamento profundamente a sua perda.

Despeço-me com os meus melhores cumprimentos."

Abraços.

1 comentário:

Luis Prata disse...

Fabuloso! :)